20.6.11

A sedimentação da crise



Cada vez mais, estou convencido que a dita “crise financeira” não é um acontecimento ocasional, fortuito e inesperado.

Pelo contrário, o que se me oferece ver é um plano estudado, preparado e posto em marcha, com emergência, mas com rigor e frieza estratégica.

Este plano terá provavelmente como detonador o processo de emancipação dos povos da América latina que, um após outro, se vieram libertando das ferozes ditaduras que os subjugaram, oprimiram e exploraram durante décadas.

A liberdade, vontade própria e novos rumos adoptados pelos povos na Argentina, Brasil, Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Paraguai, Chile, Honduras, Equador, El Salvador, independentemente das diferenças entre si, terão constituído um ruidoso sinal de alarme para o capitalismo mundial.

O alargamento em “mancha de óleo” deste processo libertador e emancipador, associado à expressão eleitoral que levou à vitória Barack Obama nos Estados Unidos - que entretanto já se mostrou domesticado e devidamente “orientado” - provocou um susto no meio da finança internacional.

Assegurar uma crescente taxa de lucro requeria procurar interromper urgentemente tal processo, cujos efeitos de contaminação pelo exemplo, se estavam a tornar altamente prováveis e perigosos.

A opção de desencadear uma guerra, habitual nestas circunstâncias, era problemática, pelo que decorria das agressões levadas a cabo pela mão de Bush Jr. no Iraque e no Afeganistão que conduziram os EUA para novos becos militares sem saída e do que dessas situações resulta na “opinião publica” interna americana.

Fazê-lo na América Latina num tempo de generalizada mobilização popular, de profundas mudanças políticas e sociais e à porta de casa seria um problema de consequências imprevisíveis, logo uma aventura a evitar.

A Colômbia ainda foi palco de ensaios nas provocações à Venezuela, mas a imediata condenação de tais manobras pelos países da região e a firmeza inteligente dos venezuelanos, travaram a manobra.

A solução alternativa à guerra (embora a opção guerra esteja também bem presente, como se pode ver com a agressão militarista à Líbia, para já, mas com a Síria também como forte hipótese de ser alvo de ataques) teria de ser uma crise, que poderia ser financeira e/ou (ainda pode) alimentar.

A crise financeira servia e serve melhor, para já, os propósitos do capital, porque a crise alimentar fica resguardada como a “bomba atómica”, a solução final, para se for necessário assegurar uma subjugação adicional de quem não acate facilmente.

E o que pretendem eles afinal ?

Do meu ponto de vista, muito simplesmente garantir ou acelerar o ritmo de crescimento da taxa de lucro, o que não é possível se se verificar um mínimo de justiça e equilíbrio na repartição entre trabalho e capital, do produto do trabalho e dos investimentos.

Os lucros apropriados pelo capital só podem crescer ao ritmo que têm crescido, se forem “roubados” ao factor trabalho, porque nenhuma economia pode crescer indefinidamente e proporcionar por essa via a satisfação da avidez capitalista.

Então a “crise financeira” tem aqui o papel essencial de promover um largo desemprego e as condições objectivas para ir obter aos salários e direitos sociais dos trabalhadores, novas margens de lucro.

Complementarmente, a privatização generalizada de todos os serviços públicos onde se espreita margem de lucro, constitui outro pilar desta sinistra intervenção global do capitalismo.

Pela via da privatização dos serviços públicos e, sobretudo dos serviços públicos essenciais, garantem-se dois objectivos essenciais. Um, imediato, de lucros acrescidos. Outro, de longo prazo, que é o de tornar reféns países e povos.

A água, a saúde, a educação, são apenas alguns exemplos das alavancas que alguns (muito poucos) indivíduos podem dispor para dominar, chantagear e submeter a seu belo prazer quem entenderem.

A água, bem comum por excelência e vital para a sobrevivência no planeta, poderá ser comercializada pelo preço que entenderem, com a taxa de lucro que desejarem ou simplesmente cortado o seu fornecimento. Que poder sem limites isso proporciona ?

Aqui um parêntesis para uma palavra para os italianos que em referendo derrotaram o propósito de Berlusconi em generalizar a privatização da água. É uma excelente notícia para a Europa e para o mundo. Note-se e sublinhe-se que o tema foi submetido a referendo. Em Portugal a privatização da água anda a ser feita pela calada há anos… Parêntesis fechado.

Veja-se, pelas receitas do FMI, na Grécia, Irlanda e Portugal se é ou não este plano que está a ser meticulosamente aplicado. Com o caso da Grécia é já bem patente, a estória “do médico e da carraça”.

A “ajuda” externa implantou a carraça e, perversamente, o FMI, suposto médico nesta estória, já não quer apenas que o doente regresse às consultas, mas que o doente pague as consultas a preços proibitivos e consuma mais e mais medicamentos, com que os quais o médico lucra também por os prescrever. Enquanto o doente não mudar de médico…

A Grécia, já se sabe, vai tomar mais uma dose do mesmo, com carraça dentro.

Mas perguntar-se-á, na Europa ? na velha e democrática Europa ? Faz algum sentido ?!...

Creio que se pode dizer que faz todo o sentido:
• Exactamente por ser “velha” e ter as mais “antigas tradições democráticas”;
• Por quase todos os seus países terem sido potências invasoras e colonialistas;
• A classe política dirigente actual da União Europeia é maioritariamente de direita, fraca, corrupta, sem projecto próprio e, logo, disponível para ser orientada e conduzida pelos poderosos, cujos interesses representam;

Vivemos hoje, europeus, a ilusão de que o nosso bem-estar (comparado com outras partes do mundo) é uma dádiva, uma dádiva solidária e simpática da economia de mercado.

Não sei se estamos a observar que é de uma Europa enfraquecida de valores, errática no rumo, subserviente com o poder económico-financeiro, corrupta na política, desgovernada na coesão, cobarde na solidariedade, traiçoeira nas relações externas, petulante nas relações internas, sobranceira nas relações económicas, que estamos a falar;

A “tradição democrática” da Europa está transformada num imenso embuste. Apesar das eleições que se realizam regularmente, é crescente o número de europeus que se sentem excluídos do sistema dito “democrático”. São tantos os condicionalismos, são tantas as frustrações, são tantas as desilusões, que se abdica mais e mais da participação, dos direitos e da cidadania;

Como bem se sabe, o voto não é, na maior parte dos casos, exercido em função de programas eleitorais, em função de projectos de desenvolvimento, em função de desígnios nacionais ou europeus, mas tão só em função de ridículas agendas partido-mediáticas, de detalhes de conduta pessoal de candidatos e de outras miudezas irrelevantes. "Rapazes, é sorrir e acenar, sorrir e acenar...";

Os europeus estão – e deixam-se estar – sitiados pelo temor que deliberadamente lhes é incutido, pelos inúmeros agentes políticos que desempenham esse papel permanente, quer entre a classe política, quer na parafernália mediática, que repetem em todas as ocasiões e até à exaustão as 3 principais teses do medo:
• A tese de que a democracia é só uma, esta, desta maneira e mais nenhuma. Sem “esta” democracia tudo seria bem pior;
• A tese de que o actual sistema económico é o único a que podemos e devemos aspirar. Qualquer outra opção ou novo caminho seria bem pior;
• A tese de que é nossa obrigação combater ferozmente e esmagar quem quer que seja que não acate o modelo “democrático” e “económico” dominante. Não o fazer é bem pior, porque porá em causa o “nosso modo de vida”;

Mas globalmente os europeus têm estado – e deixam-se estar – numa “zona de conforto”, cada vez mais aparente, da sua suposta superioridade institucional, política, tecnológica, civilizacional.

Talvez se imaginem, como continuando a dispor de todos de todos os meios e recursos que o colonialismo e o neo-colonialismo lhes têm proporcionado ao longo de séculos, mas tudo indica que esse ciclo virtuoso – para quem explora – está a terminar. E o estertor da Europa colonial está a intensificar-se fortemente e vai, inevitavelmente, significar o último suspiro desta forma de ser Europa.

Certo, certo, como se pode ver quotidianamente, é que os detentores do capital geraram a crise e tudo farão para a aproveitar ao máximo. Estão a fazê-lo e aceleradamente, porque sentem que é uma oportunidade histórica sem precedentes. E como os pit-bull, morderam o naco e não o largam a menos que sejam obrigados.

Como não estão reunidas ainda forças suficientes de reacção a esta ofensiva sem paralelo, a crise será prolongada por todo o tempo possível, para assegurar todos os lucros que forem capazes de extrair do colapso social europeu.

Os países apanhados na engrenagem, e se a revolta séria não tiver lugar em cada lugar, podem contar já com décadas de dependência e sacrifícios inimagináveis para o Séc. XXI.

Digo décadas assumidamente, porque, é quase certo que ninguém vai conseguir pagar as dívidas externas nos montantes, prazos, juros e consequências sociais e económicas que os planos do FMI & Cª significam. Logo, quem percorrer tais caminhos fica indefinidamente refém.

Pensada e meticulosamente desenvolvida, a crise vai, como não podia deixar de ser, sedimentar-se.

Evidentemente, está nas mãos dos povos, libertarmo-nos da canga ou carregar com ela, por gerações.

Mas se acharmos que quem nos trouxe a crise e para a crise nos vai resolver o problema, podemos começar a pôr as grilhetas nos pés, porque uma "nova escravatura" se nos vai apresentar.

19.6.11

A intermitência da minha morte… política

I.
Por razões que desconheço, o meu Partido, no já longínquo ano de 2003, decidiu engavetar-me, apagar-me das fotografias oficiais e excluir-me da actividade partidária;

II.
Nenhuma diligência minha para aclarar os fundamentos dessa medida político-administrativa – nem mesmo uma carta ao secretário-geral, que nunca teve resposta (ou será que teve ?!...) – teve correspondência.
Nenhuma disponibilidade insistentemente manifestada junto de diversos organismos e organizações, junto de militantes e dirigentes, teve qualquer eco ou manifestação de interesse efectivo. Aqui e além, apenas e só, palavras de circunstância ou envergonhada benevolência;

III.
Verifiquei e consciencializei muito rapidamente que nem aqueles que me viram “nascer” e acompanharam anos a fio, nem os amigos de outras lides que se cruzaram comigo nestas, se dispunham a qualquer solidariedade, a qualquer camaradagem, a qualquer atitude de esclarecimento ou de mero respeito estatutário. A “fawta” estava lançada e a fazer o seu caminho, simplesmente;

IV.
Estava clara a estratégia dos infelizes dirigentes partidários em me empacotar sob o mais espesso silêncio e nevoeiro de que fossem capazes, sub-repticiamente, à revelia do debate democrático, em contravenção com os estatutos e ao arrepio de qualquer decisão colectiva que passam a vida a incensar publicamente;

Não foi difícil criar o ambiente interno para cumprir tal desiderato. Bastou conquistar para a cabala os que estão sempre prontos em nome dos “interesses do Partido” (assim, uma espécie de superiores e secretos interesses partidários, que se furtam à discussão colectiva, à análise crítica, á inteligência militante. Nunca ninguém sabe de onde vêm essas supremas e classificadas “orientações”, quem as estabeleceu e quem deu ordem para serem aplicadas), dizia eu que estão sempre prontos em nome dos “interesses do Partido”, em executar diligentemente essas perversas missões, normalmente de tentativa de descredibilização pessoal, por incapacidade total de desempenho de acção política similar;

E assim foi feito e todos (na verdade, nem todos, mas uma imensa maioria) assumiram a revolucionária tarefa e impuseram-se um opaco silêncio, fazendo jus à tão em voga mistura entre análise e comunicação política e ditados populares. Algo, talvez orientado pelo formoso dito: “quem não aparece, esquece”;

V.
Se é certo que objectivamente o propósito terá sido alcançado, ou seja, as organizações e os membros do Partido assumiram a “orientação” de me isolar, apagar e excluir e, militantemente e disciplinadamente, fizeram-no;

Percebia-se (e percebe-se)o desejo de que saia, para me colarem a outros partidos, a movimentos, a pessoas que do seu estreito ponto de vista são pouco recomendáveis. E aí teriam o seu momento de glória e demonstração: “Estão a ver ?!... Nós não dizíamos que era mais um contra o Partido ? Mais um que queria destruir o Partido ? Mais um, como outros – e lá viriam os nomes do costume, que partilharam a gamela dirigente e trocaram os amanhãs que cantam pelos hoje que tilintam – que estava a caminho do outro lado ?!...”

VI.
Contudo, a coisa não conseguiu ser completamente bem sucedida e ficaram com um problema entre mãos. Embora na gaveta, o cadáver ainda mexe, ninguém tem coragem de lhe passar a certidão de óbito e de o enterrar. A morte ficou, e está, encalhada, como no romance de Saramago, as Intermitências da Morte;
Nem há coragem revolucionária para matar o perigoso defunto, nem humildade ideológica para espreitar para dentro da gaveta. Falta a capacidade política de lidar com a questão;

Assinala Saramago no seu romance com a sua reconhecida perspicácia que “são estes os perigos dos automatismos das práticas, da rotina embaladora, da práxis cansada”
E assim, cá espero, como o violoncelista, a carta de cor violeta;

VII.
As primeiras VI notas foram redigidas antes das eleições legislativas antecipadas de 5 de Junho, esta VII, está a ser redigida depois, para reflectir com alguma pertinência e actualidade a representação eleitoral, embora não esperasse grandes surpresas dos resultados do PCP;

Pode a direcção partidária estar satisfeita, embora por razões completamente circunstanciais: a CDU elegeu mais um deputado e subiu, uns pós, percentualmente. Não sei se será motivo de preocupação ou não, mas voltou a perder votos;

Desta vez não é preciso afirmar qualquer vitória a partir da derrota, porque os jornalistas e os comentadores políticos encarregaram-se disso;

VIII.
Concluir-se-á, portanto, que o PCP tem razão em actuar como actua. Embora, uma vez mais com menos votos, se consiga o milagre do “crescimento”;

Uma boa escolha dos “factos” que interessam resulta numa acrescida legitimidade à orientação política e à conduta geral, interna e externa;

Logo, aqueles que pensam que a um Partido Comunista, cabe fazer mais, melhor e diferente, só perturbariam – e quem sabe, comprometeriam – os sucessos alcançados;

IX.
Todos estes anos fora da actividade partidária, por um lado, confortaram-me e acomodaram-me, por outro, incomodaram-me e agitam-me. Não explicarei agora a adjectivação;

O que tenho como certo e provado é que o país não está melhor, o Partido não tem mais votos, nem maior intervenção na sociedade portuguesa e são já muito poucas, as referências de que me posso orgulhar de partilhar e quase inexistentes as passíveis de adoptar;

X.
Vou-me embora ? Não vou.

XI.
Mas sou comunista e, logo, conquisto a minha própria liberdade, para além da liberdade colectiva pela qual luto. Sinto-me suficiente lúcido e capaz de escolher caminhos;

XII.
O Partido é um instrumento, mas não é o único meio de intervenção possível. Novas possibilidades se oferecem e eu não espero mais.